domingo, 18 de janeiro de 2009

Fernando Pessoa e seus heterônimos

Até agora só postei assuntos relacionados de alguma forma a ciência, tecnologia e meio ambiente. Mas o blog também visa tratar de assuntos relacionados à cultura, principalmente brasileira. Isso não impede que falemos também de cultura internacional. Então, vamos começar falando de um poeta português que eu gosto muito: Fernando Pessoa.

Comecemos com a biografia do poeta:

Nascido em 1888, em Lisboa.
Sua primeira infância foi marcada por acontecimentos que deixaram cicatrizes para toda a vida. Com apenas cinco anos, em 1893, perdeu o pai, vítima de tuberculose. A morte do pai traz tantas dificuldades financeiras à família, que Pessoa, o irmão e a mãe são obrigados a baixar o nível de vida, passando a viver na casa de Dionísia, a avó louca do poeta. Em 1894 morre Jorge, seu irmão. Talvez para compensar essas perdas, neste mesmo ano Fernando Pessoa "encontra" um amigo invisível: o Chevalier de Pas, ou Cavaleiro do Nada, "por quem escrevia cartas dele a mim mesmo", diz o poeta, na carta de 1935 ao crítico Casais Monteiro.
Dois anos após a morte de seu pai, sua mãe, Madalena, casa-se com o comandante João Miguel Rosa, cônsul de Portugal na cidade de Durban, uma colônia inglesa na África do Sul, e é para lá que a família se muda no ano seguinte.
Em 1896 Fernando Pessoa inicia o curso primário na escola de freiras irlandesas da West Street. Três anos depois, ingressa na Durban High School. Considerado um aluno excepcional, em 1900 e admitido no terceiro ano do liceu e, antes do final do ano letivo, e promovido ao quarto ano. Faz em três o que deveria fazer em cinco anos.
Aos 14 anos ele escreveu seu primeiro poema em português que chegou até nós:

“(...)
Quando eu me sento à janela,
P’los vidros que a neve embaça
Julgo ver a imagem dela
Que já não passa... não passa...”


Considerado o maior poeta da língua portuguesa do século XX. Escreveu alguns dos mais belos versos da língua portuguesa, além de contos e peças, e tornou-se um dos nomes-chave da poesia moderna mundial.
Criou vários heterônimos, com personalidades e estilos de escrita próprios. Pessoa é vários poetas num só.

Nas próximas linhas vocês saberão como surgiram estes heterônimos. Tudo começou no dia 8 de março de 1914, “o dia triunfal”. Deixemos que o poeta nos conte:

“... foi em 8 de março de 1914 – acerquei-me de uma cómoda alta e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O guardador de rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim que, escritos que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio, também, os seis poemas que constituem a Chuva oblíqua, de Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente... Foi o regresso de Fernando Pessoa – Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou, melhor, foi a reacção de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro. Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir – instintiva e subconscientemente – uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o via. E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num jacto, e a máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a Ode triunfal de Álvaro de Campos – a ode com esse nome e o homem com o nome que tem. Criei, então, uma coterie inexistente. Fixei aquilo tudo em moldes de realidade. Graduei as influências, conheci as amizades, ouvi, dentro de mim, as discussões e as divergências de critérios, e em tudo isto me parece que fui eu, criador de tudo, o menos que ali houve. Parece que tudo se passou independentemente de mim. E parece que assim ainda se passa. [...] Eu vejo diante de mim, no espaço incolor mas real do sonho, as caras, os gestos de Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Construí-lhes as idades e as vidas.” (carta a Casais Monteiro, janeiro de 1935)

Ou seja, em 8 de março de 1914 nascem os heterônimos Alberto Caeiro – que ele logo toma como seu mestre -, Ricardo Reis e Álvaro de Campos; nascem dele, com suas respectivas obras.

E por que heterônimos e não pseudônimos? Porque, quando usa um pseudônimo, um poeta se esconde atrás de um nome falso. É para esconder o nome verdadeiro que o pseudônimo existe. O heterônimo, ao contrário, não esconde ninguém, é um personagem, criado pelo poeta, que escreve sua própria obra. Tem nome próprio, obra própria, biografia própria e, sobretudo, um estilo próprio.

E quem são esses heterônimos, esses personagens criados por Pessoa? Deixemos que o poeta mesmo os apresente como os “vê”, tal como fez na tarda a Casais Monteiro, em 1935:

Alberto Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão nem educação quase alguma. [...] Caeiro era de estatura média, e, embora realmente frágil (morreu tuberculoso), não parecia tão frágil como era. [...] Cara rapada todos – o Caeiro louro sem cor, olhos azuis; [...] Caeiro, como disse, não teve mais educação que quase nenhuma – só instrução primária; morreram-lhe cedo o pai e a mãe, deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia-avó. [...] Como escrevo em nome desses três?... Caeiro, por pura e inesperada inspiração, sem saber ou sequer calcular o que iria escrever [...] Caeiro escrevia mal o português [...]”

Quanto a Ricardo Reis:

“Ricardo Reis nasceu em 1887 (não lembro do dia e mês, mas tenho-os algures) no Porto, é médico e está presentemente no Brasil. [...] Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais forte, mas seco. (Do que Caeiro, que era de estatura média) [...]
Cara rapada todos – [...] Reis de um vago moreno mate; [...] Ricardo Reis, educado num colégio de jesuítas, é, como disse, médico; vive no Brasil desde 1919, pois se expatriou espontaneamente por ser monárquico. É um latinista por educação alheia, e um semi-helenista por educação própria. [...] Como escrevo em nome desses três? [...] Ricardo Reis, depois de uma deliberação abstrata, que subitamente se caracteriza numa ode. [...] Reis escreve melhor do que eu, mas com um purismo que considero exagerado. [...]”

Quanto a Álvaro de Campos:

“[...] Álvaro de Campos (o mais histericamente histérico de mim) [...] Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de outubro de 1890 (às 1:30 da tarde, diz-me o Ferreira Gomes; e é verdade, pois, feito o horóscopo para esta hora, está certo). Este, como sabe, é engenheiro naval (por Glasgow), mas agora está aqui em Lisboa em inactividade. [...] Como escrevo em nome desses três? [...] Campos, quando sinto um súbito impulso para escrever e não sei o quê. [...] Caeiro escrevia mal o português, Campos razoavelmente mas com lapsos como dizer “eu próprio” em vez de “eu mesmo”, etc. [...] O difícil para mim é escrever a prosa de Reis – ainda inédita – ou de Campos. A simulação é mais fácil, ate porque é mais espontânea, em verso.

Fernando Pessoa morreu em 1935. O único livro publicado em vida foi "Mensagem", do qual postarei alguns poemas e de onde retirei algumas informações sobre a vida do poeta, postadas até aqui.

Fernando Pessoa

“O que nós vemos das coisas são as coisas.
Por que veríamos nós uma coisa se houvesse outra?
Por que é que ver e ouvir seria iludirmo-nos
Se ver e ouvir são ver e ouvir?

O essencial é sabe ver,
Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê,
Nem ver quando se pensa. [...]

Alberto Caeiro (Homem ligado á natureza, ele só acredita mesmo no que ouve e no que vê. Para ele não existe mistério).


“Tão cedo passa tudo quanto passa!
Morre tão jovem ante os deuses quanto
Morre! Tudo é tão pouco!
Nada se sabe, tudo se imagina.

Circunda-te de rosas, ama, bebe
E cala. O mais é nada.”

Ricardo Reis (Faz uma poesia clássica, pagã, preocupada com a passagem tão rápida do tempo, que tudo aniquila)


“Não: não quero nada.
Já disse que não quero nada.
Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.
Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!)
Das ciências, das artes, da civilização moderna!
Que mal fiz eu aos deuses todos?
Se têm a verdade, guardem-na (...)”

Álvaro de Campos (Ao contrário de Reis, é o poeta da modernidade, da euforia e do desencanto da modernidade; é o poeta da irreverência total a tudo e a todos.

“O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas da roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração”

Fernando Pessoa

Nenhum comentário: